Primeira mulher do continente a coordenar equipe de luta greco-romana, Lucimar relembra carreira

Lucimar Medeiros. Foto: Arquivo Pessoal
Lucimar Medeiros. Foto: Arquivo Pessoal

O tom de voz pausado e ao mesmo tempo grave organiza os alunos, alguns dando seus primeiros passos no wrestling, outros já veteranos desta ou outras modalidades de combate. De cabelo grisalho raspado e andar firme, Lucimar Medeiros lembra uma guerreira africana de um longínquo passado.

Medeiros inclusive foi minha técnica em minha passagem pelo Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa (COTP) de São Paulo, onde ela foi supervisora da modalidade de 2009 a 2021, tendo antes sido atleta e estagiária voluntária de técnica de wrestling, tendo ao todo 19 anos de casa e 12 conduzindo o grupo. Porém poucos sabem o tanto que ela caminhou para obter respeito no meio das lutas, ela mesma pouco fala e é arredia quanto às entrevistas.

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O ingresso nas lutas se deu aos nove anos de idade no judô. “Me inspirava muito nas judocas brasileiras Solange Pessoa e Soraia André, e, depois no wrestling acompanhei o trabalho da búlgara Stanka Zlateva”, recorda em entrevista exclusiva ao Yahoo Esportes. A mãe gostaria que ela calçasse as sapatilhas de balé, mas foi com o quimono que se identificou e a levou a escrever sua própria jornada.

Quando a conheci éramos colegas de treino nos anos 2000, Lucimar já havia migrado para o wrestling, sendo uma judoca de nível internacional, uma vez que foi da respeitada seleção brasileira da modalidade e era considerada a atleta mais técnica de grappling – estilo luta agarrada – da América do Sul.

Em 2010, Lucimar foi técnica da seleção brasileira de luta greco-romana no Campeonato Pan Americano de Cadetes. O Wrestling é dividido em três modalidades: greco-romana, estilo livre e feminino. Nenhum permite golpes de contusão como socos e chutes, tampouco finalizações como o mata-leão; são empregadas imobilizações e alavancas. Na greco-romana é permitido apenas agarrar acima da cintura, já o livre e o feminino são similares e se pode agarrar os membros inferiores assim como utilizar pernas para ataques e defesas.

O feito de Lucimar é impressionante porque não se há conhecimento de outra mulher no continente americano coordenando uma equipe de luta greco-romana, um estilo voltado apenas para homens. O ineditismo era visível no olhar de surpresa e até de desconforto entre os presentes naquela ocasião. Mais um feito que faz sua posição no wrestling brasileiro ser exaltada pelos seus pares.

Lucimar Medeiros. Foto: Arquivo Pessoal
Lucimar Medeiros. Foto: Arquivo Pessoal

O reconhecimento de uma longa jornada

Antoine Jaoude foi o único atleta da América do Sul na competição de wrestling nos Jogos de Atenas 2004, e recorda de Medeiros como “uma atleta fantástica, (a qual) se destacava pela sua postura e agressividade, chamava muita atenção, eu admirava muito o estilo dela de lutar, impunha presença”.

O lutador elogia a passagem de Medeiros como supervisora de wrestling do COTP denotando a vivência da mesma: “não poderia ter uma pessoa melhor no wrestling e a experiência é fundamental para cargos de gestão”.

Na sua passagem formou atletas que hoje se destacam pela seleção nacional como Ailton Brito e Vinícius Joaquim. O segundo já vinha de outro espaço e estava descontente com a modalidade, porém no COTP encontrou os recursos necessários para seguir adiante.

“Em 2017, tive a oportunidade de migrar do projeto para o Centro Olímpico, vinha já um pouco desacreditado de carreira no esporte, mas quando cheguei encontrei em Lucimar uma mãezona e me deu uma orientação, um norte e opções de como estudar fazer uma transição (para o meio acadêmico), e hoje sou formado em educação física”, lembra Joaquim.

Na formação de jovens, Medeiros não se preocupa apenas em classificá-los para campeonatos ou mesmo para os tão cobiçados Jogos Olímpicos, mas também em como se dará a vida destes após o ciclo esportivo, algo pouco pensado dentro do esporte brasileiro.

Entre os atletas que treinaram com ela, muitos ingressaram no ensino superior e seguiram carreira nas áreas de formação paralelamente com a carreira esportiva, após obterem os objetivos de atletas ou, no caso de alguns, ao perceberem que viver de esporte seria inviável.

Além de atletas, Medeiros formou também outros técnicos de wrestling como Thiago Queiroz, profissional de educação física que foi seu assistente técnico e é o atual supervisor de wrestling do COTP.

“Meu primeiro contato com a Lucimar foi há mais ou menos 13 anos. Me lembro exatamente do momento em que fui apresentado como um potencial atleta do Centro Olímpico. Na época, eu tinha 19 anos e uma lesão no joelho; um cenário quase improvável para a admissão em um grupo de atletas de categoria de base”, relembra Queiroz sobre a dúvida de obter um espaço que outros tantos também cobiçavam.

“Por algum motivo, fui aceito; aliás, fui acolhido como um filho. E de alguma forma, eu sempre soube que aquela seria uma das melhores fases da minha vida. Entretanto, o que eu não sabia é que aquele seria o ponto de mudança em meu caminho e que transformaria a minha história de vida para sempre”, afirma Queiroz que vinha de uma passagem pelo jiu-jítsu.

Além da formação esportiva e intelectual dos atletas, Medeiros trouxe em sua passagem pelo wrestling os valores do judô e além disto sempre se preocupou com as condições psicológicas e de bem-estar na modalidade, principalmente conversando sobre o problema de assédio e abuso sexual cometido contra atletas.

“Foi um grande desafio, abriu muitas portas de oportunidades únicas. Fiz amigos verdadeiros que tenho até hoje e me ajudaram muito na jornada diária de pesquisas e treinamentos. Analisando os resultados durante a gestão, a equipe se firmou no patamar em crescente desenvolvimento, mas apesar dos esforços havia um déficit nas categorias de reposição de atletas. Muitos anos trabalhando ‘solo’, e mesmo assim se mantendo entre as principais equipes”, afirma Medeiros sobre sua passagem pelo COTP.

Lucimar Medeiros. Foto: Arquivo Pessoal
Lucimar Medeiros. Foto: Arquivo Pessoal

A mulher negra na arena esportiva

Wrestling é um esporte masculinizado, há apenas pouco mais de duas décadas as mulheres passaram a competir, sendo que a modalidade encontra suas raízes na Antiguidade humana e está no programa Olímpico desde os primeiros jogos da era moderna iniciados com Atenas 1896, e por muito tempo não se viam rostos negros com destaque, algo que mudou com o avanço da seleção estadunidense e a popularização do esporte.

Porém, a realidade de Lucimar Medeiros é a de uma mulher negra brasileira, oriunda de um país com índice de três vítimas diárias de feminicídio e ao menos sete estupros diários, sendo a maioria das vítimas meninas com menos de 14 anos, conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Ainda neste cenário a mulher negra lida com desvantagens econômicas em relação a outros grupos sociais, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) levantou em 2021 que a cada R$1 ganho por um homem branco, a mulher negra recebe R$ 0,43.

Questionada pelo Yahoo sobre qual o espaço da mulher negra na sociedade brasileira, a escritora e jornalista Eliana Alves Cruz explana: “É a maioria da população e as que estão na base da sociedade nas posições mais vulneráveis, logo, servindo as demais e lhes garantindo a vida. No entanto, a maioria quantitativa não lhes garante maioria representativa nas instituições brasileiras da esfera de poder como os poderes legislativo, executivo e judiciário; o corpo docente das universidades; o corpo de médicos dos hospitais e assim por diante.”

Cruz relembra o discurso da atriz americana Viola Davis na premiação do EMMY de 2015 quando expôs que o que falta às mulheres negras são oportunidades. Cruz acredita que as condições do país levam à perda de “uma quantidade incalculável de talentos para a precariedade das condições de vida de meninas negras”.

Pergunto para Medeiros se raça ou gênero tiveram algum peso em sua carreira ou até mesmo vida pessoal, e ela é sucinta: “houve alguns episódios, mas nunca os valorizei. Sempre acreditei e foquei no que amava fazer e aonde poderia chegar”. Medeiros é um exemplo de meritocracia, um conceito belo, porém que nem sempre ecoa em nosso país.

Cruz acredita que Medeiros serve de exemplo para jovens atletas desde uma questão de representatividade já que “mostra a muitas mulheres como ela que é possível ocupar aquele espaço” e lembra que são raras as mulheres negras que ascendem ao posto de técnicas e dirigentes. O trabalho de Lucimar é reconhecido pela imprensa nacional e internacional assim como também pela entidade máxima do esporte, a United World Wrestling.

Para Jaoude, Medeiros é importante porque dada à realidade esportiva brasileira, a tendência é de atletas “aos poucos abandonarem o esporte, já que poucos ficam para compartilhar e a Lucimar formou grandes atletas e até hoje o Brasil agradece”.

Desde 2017 não treino ou mesmo vejo Medeiros pessoalmente, porém mantemos contato até os dias de hoje, inclusive na pandemia, a guerreira se afastou do esporte para cuidar de assuntos pessoais.

Junto ao COTP, Medeiros foi um dos nomes que mais me apoiaram no wrestling, mesmo quando pessoas “próximas” gritavam em minha cara que eu era um “ninguém” sem rumo por não ter emprego formal. Com tudo isto, sei que quando regressar poderei ter mais confiança no wrestling brasileiro assim como na nossa sociedade de forma geral, afinal Medeiros transmite valores necessários para todos transcendendo origem, classe social ou raça.