Primeira mulher negra a subir o Everest: conheça a trajetória da paulista Aretha Duarte

A jovem alpinista Aretha Duarte conta como foi conquistar o mundo e estar literalmente no topo do planeta, ao escalar o Everest

Aretha Duarte (Foto: Gabriel Tarso)
Aretha Duarte no topo do Everest em 2021 (Foto: Gabriel Tarso)

A jovem alpinista Aretha Duarte contou ao Yahoo Esportes como foi conquistar o mundo, estar literalmente no topo do planeta, ao escalar o Everest e por sua vez, ser a primeira mulher negra a subir a maior montanha do planeta. Os desafios, medo, preparação, superação, patrocinadores e incentivadores.

Vencer, quebrar tabus, superação, a história de crueldade e segregação contra os negros ao longo de décadas, séculos, têm se acentuado um mundo de injustiças, mas que o mesmo tempo que tratou de separar, dividir, trouxe a resiliência de uma nação, ignorada, oprimida, por escravocratas, patriarcas, a síntese do racismo estrutural, um ‘Apartheid’ histórico.

O talento foi a resposta para tais manifestações sociais, suas expressões artísticas, em sua essência. O esporte foi uma extensão dessa revolução. Ali, Pelé, Bolt, Jordan e tantos outros, não conquistaram apenas títulos e recordes, protagonizaram, revolucionaram.

Em um universo paralelo ainda paradoxal, de distorções sociais, raciais, uma parcela dessa mesma sociedade, as mulheres, em especial, as mulheres negras ainda se mantinham excluídas de tudo. Fora dos holofotes, tiveram que não vencer apenas o racismo, mas o machismo estrutural.

Impossibilitadas, proibidas, violentadas, discriminadas, sentiram o gosto do sangue, da violência visceral, sob o ‘chicote’ moral da sociedade a pena por ser mulher, esportista, negra, independente.

Martas, Formigas, Cristianes, Rebecas, Rayssas, Rafaelas, exemplos de superação, mudanças de paradigmas, transformações sociais, revoluções.

Neste contexto de empoderamento e luta surge Aretha Duarte. Nascida e criada na periferia de Campinas, Aretha é formada em educação física e acumula experiência de uma década no montanhismo e já praticou o esporte em sete países. Já escalou o Aconcágua, na Argentina (cinco vezes), o ponto mais alto fora do Himalaia, e o Monte Kilimanjaro, maior montanha da África, além Elbrus (Rússia), Monte Roraima (Venezuela), Pequeno Alpamayo (Bolívia), Vulcões (Equador), entre outros.

SER A PRIMEIRA MULHER NEGRA NO TOPO DA MAIOR MONTANHA DO PLANETA

“Ser a primeira negra latino-americana chegar ao topo do Everest de maneira muito superficial pode parecer algo babaca, bobo, mas no meu entendimento é realmente um romper de estruturas sociais. Gerar impacto minimamente mental a nossa sociedade para perceber o erro que há em nossa estrutura social como é que um país cuja maioria é declarado pessoas negras, ou seja, mais de cinquenta por cento são pessoas negras de um país, mas a gente não avista a proporção dessa população nas montanhas por exemplo. Absolutamente tem algo estranho aí. E o estranho, ou melhor, o erro aí é a limitação, é a falta de oportunidade às pessoas negras. Que de modo geral são marginalizadas, vivem em regiões periféricas historicamente falando. Dê a libertação da escravatura. Essas pessoas foram colocadas às margens da sociedade sem acesso a boa educação, sem acesso ao trabalho, acesso às condições dignas para realmente serem efetivamente protagonistas, líderes da sua história. Isso não é atual, isso não é recente, isso é de muitos anos. E chega até hoje. Então, eu ter me tornado a primeira negra latino-americana a chegar no topo do Everest foi a forma que fez com que muitas pessoas refletissem sua atuação, refletissem a estrutura social que em que vivemos para que haja sim a intenção desse pra que assim decidamos enquanto sociedade ter a intenção de promover equidade de oportunidades. É isso que significa a minha realização no Everest”.

QUEBRAR TABUS, PRECONCEITOS É O MAIOR DESAFIO NO MONTANHISMO

“O montanhismo é ainda o esporte bastante masculinizado, entendido como sendo a atividade para pessoas muito fortes. De modo geral, entende-se que é de homem. Poxa, ainda há muita chance, há muita oportunidade, há muito que crescer do ponto de vista de participação da mulher na prática, do montanhismo. A gente não tem guias, mulheres, por exemplo, praticamente no Brasil, não tem guias, mulheres levando grupos para alta montanha. O número é muito pequeno. Sou eu e mais uma ou duas mulheres do Brasil que tem essa prática divulgada e efetiva, a gente não vê nos grupos, a maioria de mulheres praticando atividade, um país cuja maioria é de mulheres. Acima de 50% da nossa população é formada por mulheres, não tem a sua proporção determinada ali na montanha. Então há muito que crescer, muito desenvolver. Montanhismo é para a mulher sim. O montanhismo exige preparação física para participar, a decisão de praticar, exige da gente um mínimo de condicionamento físico para realizar logo as caminhadas ou a escalada, exige uma adequação uma organização financeira para bancar a viagem, a expedição, os equipamentos. E no caso da mulher negra é pior ainda. Além de culturalmente haver um preconceito sobre a participação da mulher, a mulher negra mal tem acesso à atividade, porque de algum modo ela tem menos recurso financeiro, poucas oportunidades no mercado de trabalho, ocupa menos espaço de decisão, de poder da nossa sociedade, então absolutamente a mulher negra tem muito mais dificuldade dessa prática esportiva”

EMPODERAMENTO FEMININO- LUGAR DE MULHER É ONDE ELA QUER ESTAR

“Eu enxergo exatamente um romper de estrutura, uma abertura de oportunidade, um arrombamento de uma porta travada que até um tempo atrás, não tinha possibilidade de acesso. Então eu vejo com muito orgulho, com muita honra e vejo que nós estamos enquanto mulheres ocupando os espaços que são nossos de direito. E isso tem sido lindo, lindo, pela libertação das mulheres para elas poderem escolher por essa prática esportiva e empoderamento. Cada vez que a gente enxerga e vê uma mulher nesse ambiente a gente vê uma mulher mais forte, mais empoderada, mais independente, mais autônoma. Reconhecendo muito bem o seu poder, a sua condição, a sua resistência, a resiliência, a sua força. Então, para mim é motivo de muito orgulho.

PLANOS PARA 2023

Para esse ano, eu estabeleci um planejamento no montanhismo. Primeiro, eu vou começar guiando um grupo de 13 pessoas ao campo base do Everest. Sendo que dentre essas 13 pessoas, 9 são mulheres. Então, é um grupo bastante especial para mim e que eu verei pela primeira vez, um grupo cujo a maioria são mulheres. A outra montanha que eu visitarei esse ano é o Denali, que faz parte do projeto de 7 cumes que estão está ali no Alasca, na América do Norte. É uma montanha que exige da gente grande dependência, força, resiliência e uma empreitada bastante dura. Estou até em busca de patrocinadores que possam nos apoiar nessa minha realização a fim de divulgar essas marcas ao mundo. Depois de Denali, eu quero estar no Huascarán que é a mais alta montanha do Peru, uma das montanhas que estão nos Andes, então eu gostaria muito de escalar. Dando prosseguimento ao meu projeto sete cumes andinos, já escalei o monte Aconcágua na Argentina, o Chimborazo no Equador e o Sajama na Bolívia. Em setembro eu volto a guiar até o monte que está na Tanzânia, mais alta montanha da África”

OS MAIORES DESAFIOS, MEDOS, NAS MONTANHAS DO EVEREST

“O Everest é assim uma montanha que nos mete medo até porque é uma das expedições cujo acampamento base é enorme e na verdade o maior acabamento base do mundo. Há muita gente tentando escalar essa montanha, a qualquer custo, em todas quaisquer condições. E a média de mortes na expedição Everest é de oito mortes por temporada, sabendo que a temporada segue de março a maio. Então são aproximadamente 8 mortes por temporada. A gente sabe que é temeroso esse risco de morrer na montanha. O Everest é assim, uma das montanhas mais difíceis de escalar, principalmente por sua altitude, tempo de exposição, é muito tempo de escalada, né? A gente reserva 60 dias para empreitada, eu fiquei 54 dias na montanha nesse ambiente hostil”

‘CUSTO DO TAMANHO DO EVEREST’...

“Acredito que o maior desafio foi alcançar o recurso financeiro para essa empreitada. O investimento necessário era muito alto para o meu contexto, minha realidade. Era aproximadamente 67 mil dólares contando parte terrestre, aérea, seguro-viagem, seguro aventura, alimentação, equipamentos e tudo mais que se relaciona à empreitada propriamente dita. Então, o investimento era muito alto e por isso eu escrevi um planejamento decidi ali quais eram as iniciativas possíveis para eu ativar, trabalhar e o que me ficou ali mais forte, mais intenso, foi voltar a fazer algo que eu já tinha feito na infância, voltei a trabalhar com reciclagem de materiais. A diferença é que agora para esse objetivo o volume de materiais recicláveis teria que ser muito maior. Justamente porque o investimento do necessário era alto, então eu precisei recrutar, solicitar ajuda de uma série de familiares, principalmente minha mãe e meus irmãos que foram os meus braços direito, esquerdo e cabeça, nessa empreitada. Muitos amigos e até desconhecidos participaram. Dezenas ou melhor centenas de pessoas que eu nem conhecia queriam ajudar. E apesar de ter muita gente interessada em ajudar fazendo parte dessa rede de apoio, ainda sim foi desafiador alcançar esse recurso total Por muitas vezes houve os contratempos no ponto de vista de aproximação do valor. A gente tentava patrocínio, não conseguia, a gente tentava ampliar o número de recicláveis, mas não conseguia, porque justamente já trabalhava de domingo a domingo com isso várias horas por dia e ainda sim era insuficiente. A gente tentava fazer financiamento coletivo, bazar de roupas, bazar de móveis, leilão de equipamento de montanha usado e venda de camisetas sustentáveis que eram de algodão orgânico ou pet reciclado. Participei de muitas ações para alcançar o recurso financeiro. Então certamente pré-escalada foi extremamente desafiador, cheio de contratempos”

RISCOS, MARCAS, DRAMAS, TEMORES NO EVEREST

“Eu sabia do risco de morte nessa montanha, a média de morte por temporada é de 8 pessoas que segue de março. O índice é alto, na minha opinião, é para isso que me preparei intensamente do ponto de vista físico, técnico e mental. Mas lá na montanha realmente sofri, há adversidades que nunca havia experimentado antes como por exemplo, um mal de altitude, princípio de drama pulmonar, queimadura de córnea, congelamento do dedo anelar da mão direita. O dia mais adverso sem sombra de dúvida foi o dia de ataque ao cume que saí do campo no último acampamento do Everest a 8 mil metros de altitude rumo ao topo com o meu guia passando. De repente, o guia saiu comigo sentindo muito frio, estando muito mais cansado do que eu, caminhando lento, com dificuldade para se locomover. Duas horas e meia depois que nós saímos do campo quando ele para, olha pra mim e fala que tínhamos que descer. Nós tínhamos que descer, por quê? Estava muito difícil pra seguir em frente, ele tinha risco de congelamento. Naquela hora, eu pensei: acabou pra mim. Eu cheguei a propor de eu ir sozinho e ele voltar pro campo até tentar se recuperar, ele não deixou. No momento seguinte eu me arrependi pela proposta que eu fiz e antes de começar a descer eu quis pedir desculpas a ele. E aí eu levantei a minha viseira, baixei minha máscara de oxigênio, olhei pra ele e falei que queria muito chegar lá em cima, havia trabalhado muito para isso, estou muito forte, consciente, em condição, mas se você tiver que congelar um dedo, uma mão, um pé, ficar doente, morrer, ficar na montanha, não me interessa mais subir, me desculpa pela proposta que eu fiz, vamos descer. E aí o passante ficou sem entender exatamente o que estava acontecendo, mas em segundos ele secou o meu rosto, voltou minha viseira, minha máscara e retomou a escalada. Retomamos em 8 horas, depois nós chegamos no topo da montanha e sim, eu me tornei a primeira negra latino-americana chegar no topo do Everest, mas isso só aconteceu por conta da ajuda de uma rede de apoio gigantesca. Eu não cheguei ao topo sozinha, eu cheguei porque houve uma estrutura, um incentivo, um apoio financeiro, um apoio emocional, físico, técnico durante toda a minha jornada até desde antes de eu ir para o Nepal”.

Trajetória

Aretha conheceu a modalidade na faculdade, aos 20 anos, quando um professor da PUC de Campinas, quis apresentar esportes outdoor para os alunos do curso de educação física e os levou até a Grade6, operadora de montanhismo. Lá ela entendeu mais sobre como funciona o esporte e se apaixonou. “Fiquei pensando: 'como nunca tinha ouvido falar neste tipo de esporte antes?'", contou.

Entusiasmada, Aretha tentou se aproximar da empresa, fazendo cursos de escalada em rocha. Trabalhou de modo eventual em eventos corporativos, para em 2011 ser efetivada. A empresa ia fazer a primeira expedição comercial ao Everest. Carlos Santalena e Rodrigo Raineri, na ocasião sócios e guias da Grade6, levaram os clientes para a montanha e convidaram Aretha para fazer parte do quadro de funcionários. "Daí em diante, comecei a praticar escalada, trekking e expedições. Em janeiro de 2012 fui pela primeira vez à alta montanha, no Aconcágua. Desde então, ao menos uma vez por ano realizo expedições no pico mais alto das Américas, na Argentina. Estive cinco vezes lá, quatro delas atingindo o cume de 6.962 metros", finaliza.

Preparação, sustentabilidade e apoio social

Expedição Aretha no Everest - Para viabilizar o projeto Everest, orçado em quase 400 mil reais, a primeira saída encontrada por Aretha foi trabalhar com reciclagem, uma volta à atividade praticada na infância e adolescência. Sua atuação envolveu a família e foi tão intensa que, no final, cerca de 35% do valor da expedição veio da coleta seletiva. Nesse processo, iniciado em março de 2020, ela se consolidou como ativista ambiental e empreendedora social. Até agora, ela juntou mais de 130 toneladas de resíduos destinados à reciclagem, reuniu cerca de 600 brinquedos usados e higienizados distribuídos no Natal e mais de 1200 livros disponíveis para uma biblioteca comunitária. Ela também implantou a primeira parede de escalada comunitária em Campinas.

Parcerias

A atuação multifacetada de Aretha teve força não apenas para envolver a comunidade, mas também para aglutinar empresas, que se juntaram à expedição como patrocinadoras. São elas: Moove Brasil, Monte Bravo Investimentos, Agência 2defy, Brasil Spot, Horas a Fio Pelo Mundo, Dardak Jeans e North Face. A montanhista também conta com os seguintes apoiadores: Farmácia Saint Germain, Moda Pense Verde, Popais Nack, 365 Palestras, Grade 6 Expedições, Eg Idiomas Campinas, Soma Ação, Marmitas Doze, Jacky Lopes Personal, Renato Fioravante, Studio de Pilates Dani Sarmento, Amalia Novaes Nutri e Thiago Lacerda.