Pioneira no jiu-jitsu: 'Não sou muito a favor de feminismo'

Patrícia Lage recebendo a sua faixa preta (Arquivo Pessoal)
Patrícia Lage recebendo a sua faixa preta (Arquivo Pessoal)

Por Gabriel Leão

Ao começar a prática esportiva na primeira infância, Patrícia Lage, 42, se deparou com barreiras que a afastavam dos treinos nos tatames e partiu para o balé, entretanto a força de vontade da criança conseguiu a levar para as tão desejadas artes marciais. Hoje, a pioneira do Brazilian Jiu-Jitsu feminino é a mulher com a maior graduação tendo alcançado em março o sexto grau na faixa preta.

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Conhecida pela proficiência técnica e agilidade nos tatames além de manter um fiel grupo de alunos na Academia Barbosa Jiu-Jitsu, Lage conta sua trajetória para o Yahoo Esportes e como o jiu-jítsu a ajuda em situações fora do dojo.

Yahoo Esportes: Seu início se deu pela vontade de praticar judô com seu pai, mestre Roberto Lage, porém naquele período ainda era muito restrita a participação de garotas em aulas de lutas e artes marciais. Porém sua família e você encontraram uma brecha e ingressaram no dojo do mestre Octávio de Almeida. O que pode contar daqueles anos? Como você ainda criança interpretava tudo aquilo?

Patrícia Lage: Na época, era proibido a prática de Judô para mulheres. Eu ia com minha mãe assistir aos treinos do meu pai, e ficava encantada com o “kimono", a roupa que ele usava. Eu sempre pedia à minha mãe para usar uma roupa daquela também e ela falava que o Sensei não deixava meninas treinarem. Como eu tinha por volta de 3 ou 4 anos, não entendia o que isso significava. Minha mãe ainda me levava à aulas de balé, mas eu detestava... (risos). Eu já fazia inglês e natação na época, e na academia onde fazia natação, uma vez saindo da aula, estava esperando a perua que me levava para casa, e vi algumas crianças - meninos e meninas - usando o tal do kimono. Fui pra casa toda contente, contei para minha mãe. Por um acaso, era onde meu pai já treinava jiu-jítsu com o Mestre Octávio de Almeida, o mesmo dava aulas para crianças. No dia seguinte ganhei meu primeiro kimono. Mestre Octávio se preocupava muito com a gente: como estávamos na escola, etc... Sempre pedia para ver nossas “lições de casa”. Não teve como não me apaixonar pelo esporte. Minha mãe sempre me incentivou muito, e meu pai, depois como meu sensei, também.

Seu começo como competidora se deu ainda na infância e diante de adversários masculinos dada a falta de colegas do mesmo sexo. Como eram suas preparações para esses campeonatos e como foi a evolução ao longo dos anos?

Lembro que para mim era super normal estar entre os meninos, sem muitas meninas. Treinar só com eles nunca foi problema pra mim, nunca!

Sempre soube que o esporte era “machista”. Mas em minha academia sempre teve bastante meninas... o problema é que elas paravam logo de treinar.

Em muitas competições lutei com meninos. Inclusive a primeira competição que perdi na minha vida, foi para um garoto, que hoje é um de meus melhores amigos. Lembro muito bem que em São Paulo havia duas crianças prodígios no jiu-jítsu, esse garoto e eu. Tal que, em um torneio cheio de crianças - acho que só eu de menina -, nos colocaram cada um de um lado da chave, pois acreditavam que nos encontraríamos na final, e foi o que aconteceu e acabei perdendo, mas brinco até hoje que isso só aconteceu porque o árbitro da luta era o Luciano Szafir, na época namorado da Xuxa, e por isso eu não estava prestando atenção a luta... (risos).

Confesso que nunca tive problemas em lutar campeonatos com os meninos, ganhei muitos, e talvez pra eles fosse um problema, mas não para mim (risos). Eu não tinha uma preparação específica para os campeonatos, apenas treinava bastante e ia lutar.

Hoje, com a profissionalização do esporte, faço preparação treinos e dieta específicos, tudo com o acompanhamento de grandes profissionais, e isso faz uma diferença enorme.

Ao longo dos anos, o cenário foi mudando, e havia mais mulheres treinando e competindo. Mas como ainda eram poucas, nos campeonatos juntavam todas as meninas, de todas as idades, faixas e pesos e lutávamos todas juntas. Hoje isso não existe mais. Temos todas as categorias de faixas, idades e pesos. Sou muito grata e feliz por acompanhar essa evolução!

Patrícia Lage (Arquivo Pessoal)
Patrícia Lage (Arquivo Pessoal)

Em muitos casos a relação de mestre e discípulo tem uma característica paternal, há também casos de pais biológicos treinando seus filhos. Como era sua relação com o Octávio de Almeida e a com o seu pai Roberto Lage? Quais diferenças e semelhanças notava entre eles?

Tenho poucas lembranças do Mestre Octávio. Eu era muito pequena quando comecei - tinha 4 anos em 1981 -, e dois anos depois faleceu. E nesse meio tempo, meu pai já tinha sua própria academia, onde passei a treinar. Mas lembro muito bem do Mestre olhando minhas lições da escola, e tratando a todas as crianças com muita atenção e carinho.

Minha família e a de Mestre Octávio eram muito próximas, pois meu pai era muito amigo de seu filho, Otávio de Almeida. Já o relacionamento com meu pai, à época, era de muita admiração. Eu o considerava um herói, fortão, e o melhor de todos. Acho que toda criança pensa isso do pai, principalmente porque meus pais eram separados, e acredito que eu devia sentir a falta dele em casa. Lembro que eu saía da escola, ia para casa, fazia os deveres e ia treinar. Eu passava a tarde toda na academia, depois voltava de ônibus para casa, todos os dias.

Nas aulas, eu sempre era exemplo. Meu pai sempre exigia muito de mim. Dizia que por eu ser filha do mestre, tinha que dar exemplos de dedicação e destreza. E assim foi por toda a vida, até que ele teve um derrame e deixou de ser meu professor, pois parou de dar aulas.

Em março você se sagrou a primeira mulher faixa-preta 6º grau de jiu-jítsu em todo o mundo. Como foi para chegar neste ponto e como pode descrevê-lo?

Confesso que até agora a ficha ainda não caiu. Pra mim é tão natural praticar jiu-jitsu, que não senti o “peso” de ser sexto grau. Eu sempre treinei, nunca parei. Faz parte de mim, do meu dia a dia. Comecei aos 4 anos, peguei a preta aos 18. Tenho 42 hoje - 38 de jiu jitsu e 24 de preta -.

Além de lutadora você também é veterinária e veterana do exército brasileiro. Como o jiu-jítsu a ajudou nestas duas carreiras?

Ah!!! Jiu-jítsu é um estilo de vida que te dá força diária mental e espiritual para você seguir a sua vida.

Foi muito difícil conciliar faculdade de veterinária, treinos, aulas.... Mas eu consegui e quando a gente quer algo de verdade, vai lá e faz, não fica arrumando desculpas. Sempre tive muita disciplina, isso me ajudou e me ajuda muito.

Essa disciplina se incorporou em mim ao longo dos anos se tornando algo muito natural, E graças à ela pude ser muito bem-sucedida nas minhas áreas. No exército principalmente. Assim como no jiu-jítsu, exército era coisa de homens, e eu lá dentro nunca liguei para isso. Simplesmente ia e fazia meu trabalho – muito bem feito.

Patrícia Lage (Arquivo Pessoal)
Patrícia Lage (Arquivo Pessoal)

Hoje vemos o crescimento de movimentos feministas como o #Metoo, se opondo ao assédio e abuso sexual, e o #Timesup, pedindo pagamentos igualitários para os gêneros. Essas questões influenciam em sua vida? Esses questionamentos já chegaram ao jiu-jítsu brasileiro?

Olha, eu não sou muito a favor de movimentos feministas. Sou a favor da igualdade sim, mas totalmente contra a mulher se fazer de vítima e usar isso para conseguir alguma coisa, algum reconhecimento.

Sei o quanto é difícil uma mulher se destacar entre os homens, mas acho que se você fizer bem a sua parte, você não precisará se vitimizar para alguém te reconhecer.

Eu tenho plena consciência de que há muita disparidade entre valores pagos aos homens e às mulheres. Antigamente não havia tantas mulheres. Como íamos cobrar por igualdade?

Hoje o cenário é diferente. Há muitas mulheres competindo. E as organizações já estão reconhecendo isso. Estão muito longe de pagar valores iguais, mas acredito que seja questão de tempo. O mais importante é que já deram o primeiro passo.

Lembro de um campeonato pelo qual pediram para que eu lutasse. Falaram que minha presença seria importante, por ser uma das primeiras mulheres do esporte e tudo mais, disseram que haveria uma boa premiação para o absoluto masculino e feminino. Perguntei quais seriam as premiações: para o masculino um notebook (laptop) e para o feminino um kit da Victoria’s Secret. Você consegue imaginar minha cara? Tive um acesso de riso absurdo, e falei para o organizador ficar esperando minha presença e a de outras meninas, porque o que mais qualquer uma queria era ganhar um kit da Victoria’s Secret.... Eu acho que não lutou ninguém... (risos).

Em relação ao assédio, nunca tive problemas. Primeiro porque aprendi a vida toda que sempre que eu entrava num tatame, a regra número 1 era a de respeito, e segundo, porque eu sempre estive focada em treinar. Confesso que ser a filha do mestre também ajudou muito.

Toda a vez que eu achava que alguma coisa estava saindo dos eixos por causa do parceiro de treino, eu me defendia sozinha. E pode ter certeza que o cara nunca mais treinava comigo. E depois que eu fazia minha parte, ainda falava pros colegas de treino que achava que poderia ter acontecido alguma coisa e eles faziam o resto.

Sempre vai ter um sem noção no tatame, homem ou mulher. A culpa, não é de um só. Cabe a você, homem ou mulher, manter o respeito. E se dar ao respeito. A partir do momento que alguém extrapole, e você não conseguir se defender sozinho, ou sozinha, fale, grite, conte para os outros. O que não pode acontecer, é se calar, jamais!

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