Futebol brasileiro vira as costas para treinadores negros

Jair Ventura, tĂ©cnico do GoiĂĄs, Ășnico treinador negro entre os clubes da SĂ©rie A do Campeonato Brasileiro, em foto de abril de 2018 (AFP/JAVIER GONZALEZ TOLEDO) (JAVIER GONZALEZ TOLEDO)

O mesmo Brasil que aclama seus craques negros, dĂĄ as costas quando algum deles quer se tornar treinador, consequĂȘncia do racismo e do preconceito herdados da escravidĂŁo que ainda fazem estragos no paĂ­s, segundo pesquisadores.

Entre os 20 times da Série A do Campeonato Brasileiro, apenas um treinador é negro: Jair Ventura, do Goiås, filho do tricampeão mundial Jairzinho. Nesta quinta-feira, Marcão se juntou a Ventura ao assumir o Fluminense depois da demissão de Abel Braga.

E o mais habitual a cada temporada é que não haja nenhum, apesar da longa lista de jogadores negros históricos, começando por Pelé.

“O mais impressionante desse dado nĂŁo Ă© nĂŁo ter treinadores negros, porque isso Ă© algo normal, e visto pela sociedade como algo normal. O que causa estranheza Ă© que esse debate nĂŁo existe no futebol brasileiro”, diz Marcelo Carvalho, diretor-executivo do ObservatĂłrio da Discriminação Racial no Futebol.

“A sociedade brasileira nĂŁo estranha nĂŁo ter pessoas negras nesses espaços. Por quĂȘ? Porque no Brasil nĂŁo Ă© comum ter pessoas negras nesses espaços. O futebol acaba sendo uma repetição disso, dessa sociedade racista”, explica Carvalho Ă  AFP.

Apesar de negros e mestiços representarem 55,8% dos 213 milhĂ”es de habitantes do Brasil, estes sĂŁo apenas 24,4% no Congresso e 29,9% em cargos de gerĂȘncia, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e EstatĂ­stica (IBGE).

- "Preconceito estrutural" -

O futebol nĂŁo Ă© alheio a essas tendĂȘncias no Ășltimo paĂ­s da AmĂ©rica a abolir a escravidĂŁo (1888).

Os treinadores que se identificam como negros que dirigiram times no BrasileirĂŁo nos Ășltimos anos podem ser contados nos dedos: Andrade, CristĂłvĂŁo Borges, MarcĂŁo, Roger Machado, Jair Ventura...

Ainda que as trocas de técnico no Brasil sejam muito frequentes, alguns deles, como Andrade, campeão brasileiro pelo Flamengo em 2009, não são mais lembrados no mercado.

Nesta curta lista tambĂ©m se pode incluir Vanderlei Luxemburgo, segundo negro a comandar a Seleção Brasileira (1998-2000), depois de Gentil Cardoso em 1959. Mas como ele, muitos se abstĂȘm ou demoram a se reconhecer como parte dessa raça.

"HĂĄ sim um preconceito estrutural (...) Devemos lutar contra, sim, pois hĂĄ um preconceito em relação ao tĂ©cnico negro”, disse em outubro o treinador da Seleção, Tite.

A discriminação se deve ao fato de que, ao contrårio dos jogadores, os treinadores ocupam uma posição de poder, dizem os especialistas consultados. E nesse caminho se afloram os preconceitos da época da escravidão fabricados para questionar seu intelecto e liderança.

"Após o fim da escravidão no Brasil, a gente nunca teve uma política de oportunidades para as pessoas negras, então sempre ficou na cabeça da sociedade que as pessoas negras não estão ocupando esses espaços porque elas não querem ou porque, de fato, elas são inferiores intelectualmente", explica Carvalho.

- Pouco compromisso -

Roger Machado conta que ao longo de seus 47 anos de vida foi vítima de atos discriminatórios dentro e fora do futebol, como quando o confundem com um segurança ao acompanhar uma de suas filhas, fruto de um casamento inter-racial.

"Nos meus primeiros trabalhos como treinador, muitas vezes, quando era demitido, questionavam a minha capacidade de gerir grupos, sendo que essa era uma das grandes capacidades que eu sempre tive como jogador, como liderança, como capitão”, disse Roger à AFP.

Depois de pendurar as chuteiras em 2009, o ex-defensor iniciou sua careira de treinador e jĂĄ dirigiu AtlĂ©tico Mineiro, Palmeiras, Fluminense e Bahia. Atualmente, comanda o GrĂȘmio, que disputa a SĂ©rie B.

Embora Roger destaque os avanços contra o racismo nos Ășltimos tempo, os quais atribui Ă s lutas de movimentos organizados, ele percebe pouco compromisso do mundo do futebol para forçar mudanças.

"Eu penso que tem muita margem para o envolvimento de muitos atletas e muitos treinadores, mas eu nĂŁo cobro isso porque sei que a consciĂȘncia de cada um vem ao seu tempo", explicou.

A sociĂłloga Danielle Cireno, especialista em desigualdade racial da Universidade Federal de Minas Gerais, acredita que o racismo pode ser eliminado do futebol e da sociedade com educação e polĂ­ticas pĂșblicas.

"JĂĄ tem polĂ­tica pĂșblica de cotas para universidades, a gente jĂĄ tem polĂ­tica de cotas para concursos pĂșblicos. Por que nĂŁo ter pelo menos uma sugestĂŁo para que haja uma cota de juĂ­zes, de treinadores negros?".

O Brasil, no entanto, nĂŁo Ă© uma exceção quanto Ă  falta de tĂ©cnicos negros. Na Copa do Mundo de 2018, na RĂșssia, apenas uma das 32 seleçÔes, incluindo as cinco africanas, tinha um treinador negro: Senegal, com Aliou CissĂ©.

raa/app/cb

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