O golpe de Donald Trump fracassou. Mas deveria ligar o alerta
O primeiro escândalo chegou antes do primeiro dia útil do ano.
Nas últimas horas de domingo 3, o jornal The Washington Post revelou um áudio em que o presidente dos EUA, Donald Trump, pressiona o secretário de Estado da Geórgia, o republicano Bred Raffensperger, a “encontrar” cerca de 11 mil votos e reverter sua derrota no estado nas eleições presidenciais vencidas pelo democrata Joe Biden.
Para dimensionar o tamanho do escândalo basta ouvir o que tem a dizer o jornalista americano Carl Bernstein, um dos responsáveis por revelar o caso Watergate. “Isso não é um déjà vu. Isso é algo muito pior do que Watergate”, disse o veterano, em referência ao esquema de espionagem contra políticos democratas montado por arapongas ligados a Richard Nixon. O caso levou o então presidente à renúncia em 1974.
Um conselheiro do presidente eleito, Bob Bauer, emitiu um comunicado classificando o diálogo como uma prova “irrefutável” de pressão e ameaça de Trump contra um funcionário de seu próprio partido. “Isso demonstra a essência do vergonhoso ataque de Donald Trump à democracia americana.”
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Mais do que isso, o diálogo joga nuvem sobre as análises de que por trás das teorias conspiratórias espalhadas por Trump e congêneres mundo afora havia um plano. Por essa lógica, Trump buscaria criar e alimentar a revolta entre os eleitores a fim de mantê-los dispostos a vingar a injustiça ocorrida contra seu candidato daqui a quatro anos. Afinal, nada gera mais engajamento do que a revolta. Ao posar como vítima, Trump fingiria revolta para estimular a revolta real de quem de fato acreditasse em sua teoria.
O telefonema mostra que Trump é quem puxa a fila do mundo paralelo que ele não criou apenas para seus apoiadores, mas para ele mesmo. É lá que ele vive. E foi lá que ele passou os últimos quatro anos, fazendo o possível para que o mundo real se adaptasse à sua versão dos fatos. Inclusive da evidente derrota eleitoral.
“Nós ganhamos no estado”, dizia Trump na ligação, apesar de todas as evidências em contrário.
O caso intriga e assusta, já que vem de lá a inspiração de seu pastiche mais mal acabado, o congênere brasileiro Jair Bolsonaro, que há pouco conseguiu a façanha de permanecer no topo do noticiário ao desdenhar (de novo) da pandemia e mergulhar no mar de Praia Grande (SP) com fãs, aparentemente treinados e orientados, e marombar a própria imagem de líder popular.
Houve um tempo em eram chamados de insanos os que tentavam provar a validade do próprio delírio. Hoje são chamados de “mitos”.
Antes que Trump inspirasse cenas do tipo “eu sou você amanhã”, os dez ex-secretários de Defesa vivos dos EUA, inclusive Mark Esper, que comandou o Pentágono sob Trump, se posicionaram, em carta aberta, dizendo que a eleição acabou. Para eles, uma possível interferência militar nas eleições poderia levar a um “território perigoso, ilegal e inconstitucional”. Ali acabava qualquer semelhança com o que pode acontecer por aqui caso Bolsonaro, que tem os militares nas mãos, saia derrotado das urnas em 2022.
Lá, em outras palavras, o que os ex-chefes dos militares haviam afirmado, em alto e bom som, é que não vai ter golpe. E por aqui?
Trump seguirá esperneando, como se já estivesse convertido num esquete que correu o mundo em que um assessor precisa arrastá-lo pela perna após o líder da nação se negar a entregar a bola das crianças no jardim da infância e se retirar do recreio.
Por aqui, faltam dois anos ainda para o pleito presidencial, mas os ataques à legitimidade da votação, hoje eletrônica, já começaram. Como se alguém já quisesse justificar a derrota e manipular uma possível revolta popular.
Ao que parece, Trump realmente acredita nos próprios delírios.
Bolsonaro, ao menos neste aspecto, talvez seja mais esperto que o ídolo flagrado pela própria gravação.