Chegada do verão reacende medo de nova tragédia da chuva em Petrópolis
Uma ou duas vezes por semana, Cristiane Gross da Silva sobe o Morro da Oficina, em Petrópolis, na Região Serrana, em meio aos escombros deixados pela tragédia da chuva de 15 de fevereiro, que causou 242 mortes. Ao chegar à parte alta, ela se senta em uma pedra que parou no exato lugar onde ficava sua casa, uma das 54 destruídas naquele dia e onde perdeu nove parentes, entre eles uma filha, um neto e um bebê de apenas 17 dias que estava criando.
Esta semana, a dor foi agravada pelo terror diante de novo temporal sobre a cidade: caiu na última terça-feira a metade da chuva prevista para o mês inteiro. Alagamentos produziram cenas parecidas com as de fevereiro, que não saem da memória dos moradores de Petrópolis.
— Para mim, todo dia é 15 de fevereiro. Eu estou presa a essa data. Eu fecho os olhos, e tudo está diante de mim. Tem dez meses que eu não sei o que é uma noite de sono. O pouco que eu durmo, eu acho que tudo será um pesadelo — disse a cozinheira, de 49 anos.
A cinco dias do início do verão, o medo de sobreviventes é de uma nova tragédia em Petrópolis, onde temporais, deslizamentos e enchentes são recorrentes. O Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) divulga hoje o prognóstico climático para a estação. A expectativa é que as chuvas na Região Serrana fiquem dentro da média histórica. Já para o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), é muito difícil que uma chuva com as mesmas características da de fevereiro volte a cair na cidade, mas essa hipótese não pode ser completamente descartada.
— O que ocorreu foi totalmente extraordinário, produto de uma combinação perfeita, no sentido errado, de vários fatores. Será muito difícil que esses mesmos fatores voltem a se combinar da mesma forma. Não significa que não teremos mais chuvas daquela intensidade, mas esse arranjo de circunstâncias de sistemas é muito difícil se repetir — explicou Marcelo Seluchi, coordenador-geral de Operação e Modelagem do Cemaden.
As Defesas Civis estadual e de Petrópolis estão se preparando para qualquer eventualidade. O órgão municipal deu início este mês ao Plano de Contingência 2023, com ações de treinamento para casos de evacuação e inundação, com instruções em especial para motoristas de ônibus. O objetivo é evitar episódios como os de dois coletivos e seus passageiros que foram tragados por um rio que corta a cidade.
O medo de reviver aquele 15 de fevereiro move a luta de Cristiane e de outros moradores por mais obras na cidade e a remoção dos escombros do Morro da Oficina. Na semana passada, o juiz da 4ª Vara Cível de Petrópolis, Jorge Luiz Martins Alves, determinou o bloqueio de R$ 2 bilhões das contas do governo do estado para forçar a execução de intervenções em áreas atingidas, além de estipular ações a serem tomadas pelo município.
O governo estadual e a prefeitura de Petrópolis já foram notificados. A ordem judicial prevê multas para gestores públicos em caso de descumprimento. A Procuradoria-Geral do Estado do Rio (PGE-RJ) informou que vai recorrer da decisão.
A tristeza e a indignação de Cristiane, durante depoimento em audiência pública, comoveram o juiz Martins Alves. Ele citou em sua sentença “o sereno, ponderado, sincero e doído ‘grito’ de socorro exclamado pela moradora Cristiane Gross, emocionalmente dilacerada pela perda de nove parentes”. O juiz fez questão de destacar que, em momento algum, ela postulou qualquer benefício.
Essa resiliência apontada pelo magistrado também contagiou sobreviventes da enxurrada. Muitos viram na cena daquela mulher sentada sobre a pedra que ficou no lugar de sua casa um motivo para lutar e seguir em frente. Procurada por famílias que enfrentavam a mesma dor, Cristiane assumiu papel de liderança, mesmo sem jamais ter feito parte de associações de moradores.
Juntos, eles alugaram uma casa que virou um centro de referência para as vítimas. No local, é oferecido apoio psicológico. Também há recolhimento de doações de roupas, eletrodomésticos e alimentos para cestas básicas. Tudo na base da solidariedade, sem ajuda do poder público.
— Os vizinhos, os amigos, vinham falando comigo. Então, eu disse: “Gente, vamos nos unir, não vamos ficar separados, nem que seja para chorarmos juntos, mas a gente precisa fazer alguma coisa”. Eu não queria ser líder. O que eu queria era que as histórias dali não morressem. Há muitas histórias que não devem ficar enterradas em escombros ou cobertas pelo mato — disse Cristiane.
A cozinheira comemora a vitória na Justiça, mas segue reticente de que algo seja feito a tempo para este verão. Enquanto isso, segue trabalhando em uma lanchonete no centro de Petrópolis e vendendo salgadinhos que faz em casa. Com o aluguel social de mil reais que recebe, a família ainda completa com R$ 200 o custo da moradia em um apartamento de sala e dois quartos. A mobília foi doada por amigos.
— Eu sou grata pela ajuda que recebi, mas não pertenço a esse lugar. Eu fui arrancada da minha história e jogada dentro de um apartamento. As pessoas pensam que, por morarmos em morro, vivíamos em barracos. Não era assim, eram 54 casas construídas ao longo de anos e que foram destruídas em sete segundos. Eu e meu marido levamos 31 anos para construir a nossa casa. Tinha muito amor nela, jamais terei algo assim — disse a cozinheira, que sobreviveu ao deslizamento, assim como seu marido e uma filha, porque não estava em casa.