Sem noção de prioridades, Brasil ajusta seu relógio com o atraso
Em janeiro de 2020, cerca de três meses antes do anúncio, pela Organização Mundial da Saúde, da pandemia de covid-19, pesquisadores chineses já haviam disponibilizado a sequência genética do coronavírus para estudos O mapeamento permitiu aos cientistas darem o primeiro pontapé em direção ao desenvolvimento da(s) vacina(s).
Em março, as empresas Pfizer e BionTech começaram a planejar a produção global de seu imunizante.
Entre 23 de abril e 4 de maio foram realizados os primeiros testes em humanos na Alemanha e nos EUA. Em maio a empresa chinesa Sinovac começou a busca por sua vacina.
Na inesquecível reunião de 22 de abril de 2020, Jair Bolsonaro e equipe mostraram seu senso de prioridade diante da pandemia que já dava mostras de que se tornaria um morticínio por aqui. Ele aproveitou o encontro para mandar dois de seus ministros assinarem uma portaria para armar a população contra prefeitos e governadores que insistiam em aplicar regras de distanciamento e isolamento social para conter a proliferação do vírus.
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Na mesma reunião, Walter Braga Neto, da Casa Civil, dizia apostar alto na implementação de um certo Plano Marshall à brasileira do qual ninguém mais se lembra. E Paulo Guedes, o Posto Ipiranga da economia, falava em abrir cassinos, deixar os viciados em jogos se “foderem”, e idealizava uma espécie de “Bolsa Estrada” em que jovens receberiam cerca de R$ 200 para aprender a cantar o hino e construir rodovias Brasil afora.
Abraham Weintraub (Educação) queria prender ministros do STF e Ricardo Salles (Meio Ambiente) achou que era um bom momento para passar a boiada na floresta.
Prioridades.
No fim de abril o país tinha pouco mais de 6 mil mortes por Covid confirmadas.
Enquanto o mundo já se preparava para desenvolver uma vacina em tempo recorde, Jair Bolsonaro usou a reunião com seus ministros para anunciar mudanças no comando da Polícia Federal e demonstrava preocupação com o avanço de investigações sobre parentes e amigos. Comprou briga com Sergio Moro, ministro da Justiça que caiu atirando, e encontrou tempo para fritar seu titular da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Prioridades.
Tanto Mandetta quanto Nelson Teich, sucessor na Saúde que percebeu a encrenca e pediu o boné, se recusavam a apostar todas as fichas nas prioridades do presidente: sabotar os esforços pelo distanciamento social e incentivar que a vida voltasse à normalidade na base da bala e da cloroquina.
Nesta quinta-feira 11 a Folha de S.Paulo revelou que o governo, no auge da pandemia, destinou ao menos R$ 70,4 milhões para a produção de medicamentos sem comprovação científica até agora. Prioridades.
Onze meses e 235 mil mortos depois, sair às ruas ainda é risco de vida no país, e a noção de prioridade do governo, que hoje hesita em colocar de novo em campo o auxílio-emergencial, parece ter se espalhado.
No Congresso, onde Bolsonaro acaba de emplacar seus aliados no comando, há quem considere este um bom momento para mudar as regras e dar autonomia ao Banco Central.
Na Câmara, um dos primeiros atos do novo presidente, Arthur Lira (PP-AL), foi promover uma pequena reforma na Casa, mudando de lugar seu gabinete e mandando os jornalistas que trabalham no local para longe, em um espaço reduzido sem janelas em plena pandemia. Prioridades são prioridades.
Nesta semana, Lira avisou os líderes partidários que chegou a hora de discutir mudanças na lei eleitoral. É a brecha para que comecem a ser debatidas mudanças como a flexibilização da cláusula de barreira, a implantação do modelo distrital e até a volta do voto impresso, como quer o presidente.
De prioridade em prioridade, o país acerta seu timing em relação ao resto do mundo. Uns caminham para o futuro. Outros contam seus mortos, queimam as fichas em todos os cavalos errados e ajustam seus relógios com o atraso.