Documentário Irmãos de Sangue retrata a tenra e trágica amizade de Malcolm X e Muhammad Ali

Em 2021, a Netflix lançou o documentário Irmãos de Sangue: Muhammad Ali e Malcolm X (Blood Brothers: Malcolm X and Muhammad Ali), um importante retrato não apenas da amizade desses dois nomes de repercussão internacional, mas das relações raciais nos EUA com suas nuances, sem tratar de forma simplória como heróis e vilões, e, se torna ainda mais importante ao se considerar o debate contemporâneo sobre tolerância.

Muhammad Ali com suas habilidades no ringue, oratória e ativismo é uma figura que transcende o pugilismo e entrou para o léxico cultural e histórico; já Malcolm X é um dos principais ativistas dos direitos civis nos EUA, porém seu nome não reverbera tanto quanto o de Martin Luther King Jr., inclusive em solo brasileiro.

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Ao mesmo tempo que Ali enfrentou o preconceito de ser visto apenas como um bruto desassociado de sua humanidade e capacidade reflexiva, percepção que mudou conforme ganhou destaque além dos progressos da sociedade e as lutas de ativistas, inclusive ele próprio; Malcolm X é erroneamente pintado por muitas fontes como uma simplória antítese de Martin Luther King.

O ponto forte do documentário Irmãos de Sangue é respeitar a inteligência do telespectador ao entrevistar fontes com opiniões diversas sem buscar direcionar a narrativa ou apoiar-se em arquétipos já desgastados. A obra ainda possui momentos emocionantes, porém sem serem apelativos como muito se vê nas produções televisivas brasileiras.

A luta dos direitos civis era por um país menos desigual no qual negros e outras minorias como asiáticos e latinos (brasileiros muitas vezes são enquadrados neste último grupo) buscavam maiores direitos como melhorias no trabalho, liberdade ao utilizar o sistema público de transporte, acesso à educação e o direito de votar. Malcolm X e Muhammad Ali foram protagonistas daqueles dias.

Enquanto Martin Luther King é era um pacifista - o que não impediu de ser retratado pelo establishment como um nome perigoso -; Malcolm X não era favorável a “dar a outra face”, e sim defender-se quando atacado, porém, as mesmas forças que antagonizaram o primeiro, o colocavam como se fosse um terrorista.

O jovem Muhammad Ali, então Cassius Clay, ainda formava o seu pensamento, e logo, passível de cometer imaturidades. Ambos eram seguidores do polêmico Elijah Muhammad, líder da Nação do Islã que pregava o segregacionismo negro e do qual tanto Ali quanto Malcolm X se afastaram ao longo dos anos, com ambos buscando caminhos de maior harmonia racial, entretanto, esse momento não se deu simultaneamente e com o assassinato de Malcolm X em 1965 não puderam fazer as pazes.

O mesmo grupo que aproximou Ali e Malcolm X foi o responsável por sua ruptura e ao trágico desfecho de uma amizade. Uma relação de irmãos que teve impactos na luta por direitos civis e na emancipação de minorias pelo mundo, uma vez que muitos países observam e buscam inspiração naquilo que ocorre nos Estados Unidos da América.

No depoimento de Ilyasah Shabazz, filha de Malcolm X, é destacável o sentimento de tensão que as pessoas negras vivenciam em relação às autoridades de seu próprio país, enquanto Maryum “May May” Ali apenas com a melancolia de seu olhar e fala pausada já demonstra o arrependimento do falecido pai quando mencionava o amigo ou o fim da amizade.

Outra fala importante vem do acadêmico Todd Boyd ressaltando a “sanitização” da imagem do jovem Muhammad Ali perante o grande público quanto aos seus momentos polêmicos e posições mais contundentes.

O uso de arquivos de imagens e de fotos junto às filmagens dos cenários desta história reforçam o tom, o qual ganha com o dinâmico uso da câmera e edição de cortes ágeis evitando a monotonia de “cabeças falantes”.

A direção é assinada por Marcus A. Clarke e a produção de Kenya Barris, ambos afrodescendentes, o primeiro um nome em ascensão em Hollywood, já o segundo tem um currículo de peso no ramo. O material se baseia no livro Blood Brothers: The Fatal Friendship Between Muhammad Ali and Malcolm X de 2016, de autoria dos jornalistas Randy Roberts e Johnny Smith; ambos brancos.

É importante ressaltar a origem dos envolvidos porque há uma sinergia: Clarke e Barris possuem a vivência de afrodescendentes estadunidenses, enquanto Roberts e Smith fizeram o competentíssimo trabalho que serve de base para este profundo e ao mesmo tempo belo documentário, prova da importância de se ter mais diversidade de vozes.

No entanto, vivemos em tempos nos quais alguns agentes buscam calar possíveis aliados de suas próprias causas o que tiraria a valorosa participação de Roberts e Smith.

Malcolm X é uma figura de enorme relevância para história estadunidense e sua cinebiografia de 1992 pelas lentes de Spike Lee e estrelada por Denzel Washington é um dos melhores trabalhos do gênero.

O documentário Irmãos de Sangue dialoga com a mesma e serve para que o público conheça mais sobre Malcolm X além das personagens que lhe são atribuídas, e, para que também encontre um Muhammad Ali humanizado além de suas esquivas plásticas, poemas engraçados e belo rosto.