Como a yakuza se relaciona com o esporte japonês e as Olimpíadas de Tóquio
O americano Jake Adelstein, 53, pertence ao tipo de jornalista que pouco se vê atualmente: vai às ruas e além disto se arrisca em matérias investigativas, lembrando o falecido Andrew Jennings, algoz da FIFA.
Adelstein deixou sua vida no estado de Missouri nos EUA aos 19 anos para estudar no Japão, consequentemente iniciou em 1993 como repórter do jornal Yomiuri Shimbun, se tornando o primeiro membro não-japonês da equipe de reportagem do tradicional meio de comunicação.
O reconhecimento veio em 2009 com a publicação do livro ‘Tokyo Vice: An American Reporter on the Police Beat in Japan’ (Random House), aqui lançado em 2011 sob o título ‘Tóquio Proibida: Uma Viagem Perigosa Pelo Submundo Japonês’ (Companhia das Letras). Narrativa que expôs os bastidores da yakuza, a máfia japonesa que tem escritórios públicos e possui laços que vão desde os meios de esportes e de entretenimento até os principais salões da política.
Por sua coragem e mente indagadora, Adelstein sofreu severas retaliações, inclusive violências físicas e psicológicas com marcas que perduram até hoje. Neste ano sua vida e livro foram adaptados no seriado ‘Tokyo Vice’ da HBO Max, com algumas liberdades artísticas, já que não é um documentário.
‘Tokyo Vice’ conta entre seus produtores executivos com Michael Mann, um dos principais cineastas americanos que dirigiu o policial ‘Fogo Contra Fogo’ (Heat, 1995), a cinebiografia do pugilista Muhammad Ali em ‘Ali’ (2001) e atuou como produtor executivo do lendário seriado policial dos anos 1980, ‘Miami Vice’ (1984 – 1989). Histórias que mostram seus protagonistas sendo desgastados pelos seus trabalhos assim como a versão fictícia e o próprio Jake Adelstein.
Nos anos recentes, Adelstein foi um intenso opositor à realização dos Jogos Olímpicos de Tóquio, os quais foram afetados pela pandemia e ao invés de serem realizados em 2020, se deram no ano seguinte. Em artigo da Vice de 2015, Adelstein apontou supostos elos entre forças políticas atuando nos Jogos Olímpicos e membros da yakuza. O escritor também ressaltou a falta de preparo, estrutura e respeito pelos atletas, cidadãos e visitantes durante e após os Jogos de Tóquio.
Em entrevista exclusiva ao Yahoo Esportes, Jake Adelstein fala dos laços da yakuza com o mundo esportivo e entretenimento, a promíscua relação desta máfia com a política japonesa, os problemas dos Jogos Olímpicos de Tóquio, a produção do seriado de sucesso da HBO Max, como é trabalhar com Michael Mann além de apontar aquilo que poucos veem, os revezes em sua vida pessoal como o falecimento de entes queridos em decorrência dos anos dedicados à uma luta na qual está sempre em desvantagem e ainda assim de muitas vitórias.
Yahoo Esportes: Como você descreveria o processo para escrever ‘Tokyo Vice’?
Jake Adelstein: Eu diria que foi um processo de dezesseis anos. Mesmo quando iniciei a trabalhar nele em 1993, já sabia que seria uma experiência única e interessante. Eu não imaginava qual tipo de livro eu escreveria, mas mantinha todas minhas anotações, cadernetas, artigos de jornais, anotações de diários, fotografias e até cópias das cartas que enviei para amigos e aquelas que eles me enviaram (era um período anterior à internet). Sendo assim, antes de começar a escrever o livro, passei meses organizando arquivos. Utilizei um scanner Fujitsu PDF para escanear os materiais para ter uma cópia digital deles.
Contratei um jovem universitário para me ajudar ao menos com os títulos para as versões em PDF com palavras-chaves relevantes assim poderia pesquisá-los mais tarde.
Mas o livro em si é uma benção e ao mesmo tempo uma maldição. Mais para benção. Quando li a parte final do livro, já que precisei reler para a primeira temporada do seriado, há ali muitas coisas que eu realmente queria esquecer, memórias muito dolorosas de pessoas queridas falecidas: Hamaya, Sekiguchi, Helena.
Me sinto envolto em tristeza e raiva. Na capa da versão americana há uma garota ao lado esquerdo, Michiel Brandt, que era minha melhor amiga até sua morte. Então isto também é uma lembrança de que se você viver por um longo período, tudo aquilo que você ama lhe será tirado. Mas este é o preço de se estar vivo, você precisa deixar as coisas partirem.
Há uns anos, em um artigo para a Vice você denunciou o possível envolvimento da Yakuza com os Jogos Olímpicos de Tóquio uma vez que fotos de um encontro entre um gangster e um político chegaram ao público. A Yakuza teve algum envolvimento com o evento?
Houve muita corrupção nas Olimpíadas. Japão ganhou a oportunidade de sediá-las por propinas. (O ex-presidente do COJ Tsunekazu) Takeda e o Comitê Olímpico Japonês subornaram oficiais do Comitê Olímpico Internacional (Lamine Diack e outros) por meio de uma companhia de fachada em Cingapura chamada Black Tidings para assim bancar a votação dos africanos. Apesar de isto ter tido ampla cobertura da imprensa e dos procuradores franceses terem investigado, por outro lado a polícia e os procuradores do Japão nunca se preocuparam em averiguar. A maioria das licitações de obras eram pouco transparentes, enquanto o governo japonês teve zero interesse em manter as Olimpíadas limpas ou em investigar qualquer coisa que os fizessem ficar com uma má imagem. Tal que, enquanto eu tenha suspeitas de que a yakuza tenha lucrado muito com construção de obras e dinheiro de suborno com os Jogos Olímpicos, não possuo provas. As pessoas com o poder de investigar estes casos, não fizeram seu trabalho. O ex-presidente da Universidade de Nihon Tanaka Hidetoshi, o homem no artigo que também já serviu como vice-presidente do Comitê Olímpico Japonês, foi mais tarde condenado por evasão fiscal. As investigações apareceram em diversas revistas que nunca tiveram coragem de apontar seus laços com a yakuza, mas de repente encontraram ímpeto para tal.
Você protestou contra a realização das Olimpíadas de Tóquio. Quais eram suas queixas?
A proposta para realização dos Jogos de Tóquio foi obtida por meio de corrupção e suborno. Partindo de um início ruim que conduziu à um desfecho ruim. A ostensiva razão alegada era auxiliar na revitalização de Fukushima, mas isto sempre foi uma mentira e uma mera distração que desviou a atenção das pessoas para os problemas reais daquela região. As verbas teriam sido mais bem aplicadas em reconduzir os moradores de Fukushima para novos lares em áreas não contaminadas. Os Jogos Olímpicos (de Tóquio) em 1964 foram realizados em outubro quando o clima é mais ameno e ideal para prática esportiva. Realizá-los no verão foi cruel com os atletas e com os espectadores.
Ter as Olimpíadas na pandemia foi uma ideia terrível e trouxe novas variantes ao país. como a Lambda, que o governo depois acobertou. Como resultado permitiu a proliferação do coronavírus, a chegada de novas variantes, aumentando ainda mais as mortes. Além disso, foi um tremendo desperdício do dinheiro arrecadado de impostos para um circo sem espectadores ou méritos.
A cerimônia de abertura se tornou um microcosmo de tudo que há de errado no Japão, inclusive a intolerância. O Japão fez um estardalhaço sobre incluir as “Paraolimpíadas” em seu trabalho de divulgação dos Jogos, mas teve a música tema composta por um pequeno malandro (Keigo Oyamada) que se gabava de torturar pessoas com deficiências em sua juventude. Foi um carnaval de corrupção e crueldade.
Qual é o legado de Tóquio 2020 para a cidade e para o país?
É uma advertência de que a elite de homens e mulheres de gerações passadas no comando da nação não se importam com as pessoas comuns. Os procuradores estão prendendo um considerável número de pessoas influentes envolvidas no pagamento de propinas para serem patrocinadoras dos Jogos, inclusive pessoas que trabalharam internamente nas Olimpíadas e isto mostra que as Olimpíadas corromperam todo mundo. Um dos presos foi o chefe da Kadokawa (Tsuguhiko Kadokawa), uma respeitável editora.
O legado são elefantes brancos como o estádio, a piscina fedorenta, os complexos que não se pagam por si próprios e vão gastando recursos públicos para sempre, uma lembrança de que o Japão fez uma decisão estúpida do início ao fim da pandemia, e de que o desejo obsessivo de ter os Jogos Olímpicos teve um papel enorme nisto.
Qual a relação entre esportes japoneses e crime organizado?
A relação em determinados esportes já foi muito próxima. Alguns lutadores de sumô foram por anos patrocinados pela yakuza e o papel da organização no escândalo de apostas do beisebol (principalmente o clã Yamaguchi-gumi da yakuza) não surpreendeu nenhum de nós. O que os procuradores e policiais nunca fizeram foi ir à fundo e descobrir que lutadores de sumô combinavam lutas com a yakuza dando as cartas nos bastidores. Você não acha estranho que lutadores de sumo e seus superiores estivessem usando chefes de apostas para apostar nos resultados dos jogos de baseball, mas não em lutas de sumô?
Jogadores de beisebol e empresários por muito tempo foram associados com a yakuza, e muitas vezes chantageados por eles, como aconteceu com (Tatsunori) Hara, do Yomiuri Giants. Houve um enorme escândalo há alguns anos quando oficiais do Tokyo Dome (arena esportiva) estavam vendendo ingressos para o clã Sumiyoshi-kai, os quais estavam agindo como cambistas. Também se tinha fã clubes de times de beiseboll comandados pela yakuza.
As atividades da Yakuza diminuíram nos anos recentes. Eles ainda estão envolvidos com esportes, política e a sociedade de um modo geral?
A Yakuza tem se dado mal desde 1º de outubro de 2011 quando foram impostas leis em Tóquio e Okinawa que tornavam em crime pagar a yakuza ou utilizar seus serviços. Agora como é crime realizar pagamentos à yakuza, muitos pararam de fazê-lo. Se você pagar a yakuza após eles te ameaçaram, conforme as novas leis, você não é de fato uma vítima, mas um cúmplice.
Entretanto, muitos políticos do Partido Liberal Democrata, incluindo o antigo Primeiro Ministro Suga (Yoshihide), ainda possuem laços turvos com a yakuza e outras forças antissociais. O falecimento de (ex-Primeiro Ministro Shinzo) Abe expôs que por anos o Partido Liberal Democrata possui laços estreitos com a Igreja da Unificação, uma seita sul-coreana.
A yakuza segue envolvida na sociedade, ainda extorque dinheiro de proteção e permanece muito poderosa no mundo do entretenimento, mas sua influência vem diminuindo conforme seus números caem.
Como se sente ao ver seu livro e sua vida se tornar um seriado de televisão?
Uma ótima sensação porque o showrunner – que é uma espécie de diretor, roteirista chefe e manager geral de um seriado de TV – neste caso, é meu amigo de Ensino Médio, JT Rogers. Nos conhecemos há décadas. Eu me tornei um jornalista no Japão, ele se tornou um respeitado roteirista que ganhou o prêmio Tony (principal do teatro americano) por ‘Oslo’ em 2017.
Há grandes diferenças entre o livro e a série, e é evidente que não pareço com Ansel Elgort (ator que o interpreta) – já que ele é consideravelmente mais alto do que eu – mas de forma geral a série é bem condizente com o período e essência do livro. Como resultado, meu segundo livro, ‘The Last Yakuza’, deve ser publicado em inglês no próximo ano. Você o achará fascinante.
E claro, há uma estranha validação em tudo isto. Se sua vida foi importante ou interessante o suficiente para se tornar um seriado de televisão, talvez você tenha conseguido fazer algo dela.
O que significa para o seriado ter o grande cineasta Michael Mann envolvido?
Eu gosto de como Michael Mann quer que seus atores vivenciem a vida dos personagens – mesmo que ele interprete uma versão fictícia de mim – Michael se assegurou que Elgort aprendesse Aikido (assim como eu fiz com a Polícia Metropolitana de Tóquio) e que ele passasse um período trabalhando como repórter.
Destaco sua atenção aos detalhes, seu desejo em tornar as coisas o mais real possível; nutro enorme admiração. Ele trouxe credibilidade ao programa, e o título do meu livro, ‘Tokyo Vice’, é uma clara homenagem ao seriado ‘Miami Vice’, foi muito gratificante tê-lo conosco. Um ciclo que se completa.